terça-feira, 23 de setembro de 2008

II

(...) Pegou seu travesseiro, colocou o pijama e foi para o sofá, mas, por algum motivo, Anne não sentia sono. Ficou deitada, olhando para o teto e fumando enquanto pensava na sutileza do tom da voz daquele rapaz; era um rapaz tão humano (com suas mãos bonitas e brancas), era um rapaz extremamente humano (com seu corpo magro tão cheio de ossos e unhas brutas), era a pessoa mais humana que já tinha visto. Humanos são bichos, repetiu baixinho, e tentou encontrar em John o que o deixava assim bicho, o que fazia dele tão humano. Os suores, os pedidos simples, as fomes, as necessidades, os sonos, o frio, os arrepios, os desejos. Sim, tudo isso cabia dentro dele e era quase estranho perceber tanta coisa dentro de uma vida que ela mal conhecia, mas que apenas por ser uma vida já tinha seu respeito, porque eram iguais. Felizmente ou não era iguais, porque eram gente, animais. E então, ao descobrir que era igual à ele, pensou nos choros, nos risos, nas tristezas, nas alegrias, nas quedas em que ninguém pensava. Se era igual a ela, quantos amores havia tido? Quantas vezes havia desejado a morte, aquele garoto? Uma súbita e estranha curiosidade nova encheu-lhe o peito e quis saber. Amor perdido ainda é amor, amor esquecido ainda é amor, amor triste também é amor. Deve ser um rapaz cheio de amores, refletiu, um em cada lugar aonde vai, tinha cara disso, e ela pensou, com vergonha de si mesma, que ela mesma poderia ser um desses. Não se importava em ser "mais um desses", mas o importante era que fosse um, poderia ser até que só voltasse nas sextas-feiras ou sábados, mas saberia viver aguardando a volta. Gostava de pensar em seus amores passados como ainda amores, e não como ex-amores, e não como peças perdidas do pequeno quebra-cabeça que completava a parte já finalizada da sua vida. Talvez ele fosse igual. Era uma forma de viver, e de nunca estar sozinha. Lembranças são companhias. Esperar por um amor assim era uma forma de viver, e de ser sozinha. Queria apenas as lembranças.

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